1 de out. de 2008

safra rara

os perigos da literatura

Literatura, isto é, escrever sem publicar, é uma espécie de vício secreto. Pequena pervesão. Que nem colocar calçinhas de mulher. Seus praticantes estão sujeitos a muito mais. Olhai uns pares deles.

COMPLEXO DE CASTRO ALVES - Leva os poetas a delirar se imaginando numa tribuna em praça pública, cercado por um mar de povo, recebendo o brado do seu bardo, o verbo quente e a exortação para a ação. Os poetas afetados deste mal substituem a ação pela palavra.

COMPLEXO DE MACHADO DE ASSIS - Manisfesta-se em um desejo irreprimível de entrar para o Serviço Público. Levar vida reservada e tímida. Ter atitudes ambíguas sobre os problemas da comunidade. Esperar a glória, pacientemente. Alguns casos mais graves levam os pacientes a fundar academias.

COMPLEXO DE JORGE AMADO
- Leva os pacientes a escrever livros e mais livros, sofregamente, uns cada vez mais parecidos com os outros. Freqüentemente, vence pelo cansaço e acorda consagrado internacionalmente. Pertence ao quadro deste complexo sonhar com o Nobel. Alguns têm frenesis em que se imaginam traduzidos para 18 idiomas.

MAL DE ROSA
- Só faz vítimas entre membros do Corpo Diplomático.
O paciente imagina que é um jagunço do sertão.
Conta casos estranhos, numa linguagem meio antiga e meio sertaneja.
E diz em entrevistas na Europa:
_ Nós, do sertão...

SÍNDROME DE BORGES
- O escritor-paciente imagina-se dentro de um livro, atacado por citações, vidas de outros séculos. Para o paciente afetado desta moléstia, o céu não tem estrelas. Tem asteriscos.
Ocorre de o paciente, andando em círculos, tropeçar numa vírgula, engolir o parágrafo e bater com a cabeça num travessão.
Devem ser constantemente vigiados.
Se não melhorarem, o jeito é encardená-los e doá-los a uma Biblioteca Pública.

MAL DE DRUMMOND
- Apenas uma variante do Complexo de Machado de Assis.
O doente pode apresentar dores abdominais.
Bem na altura de Minas Gerais no mapa do Brasil.
A seguir, os delírios.
O paciente grita:
_ Tirem essa pedra do meio do meu caminho!

ATAQUE A JOÃO ANTÔNIO
- Os acometidos desse mal crêem-se jogadores de sinuca, malandros da noite e velhos boêmios. Alguns tentam se parecer com Adoniram Barbosa. Quando alguém disser "literatura é um corpo-a-corpo com a vida", esteja certo: ali está alguém sofrendo do Mal de João Antônio. Vivem normalmente de uma dieta de Górki e Lima Barreto. O melhor modo de curá-los é convidá-los para uma partida de sinuca.

PARALISIA CABRALINA
- Súbito enrijecimento do nervo poético, causado por leituras intensivas da obra de João Cabral de Mello Neto. O cabra da peste acometido desse mal começa a ver tudo em quadrinhos e a só reconhecer rimas toantes. Nos casos mais graves, desenvolve pedras nos rins, na bexiga, e na veia. Apresenta tendências para a litogravura, a marmoraria, ou coleciona cristais. Tem o coração de pedra, e só se comove com agrestes, caatingas e canaviais pernambucanos. Normamelnte, leva uma vida e morte severina.


por paulo leminski
do livro ensaios e anseios crípticos

Um comentário:

Unknown disse...

eu acho que tenho todos esses complexos em mim...me encerro em um mundo obscuro e particular e acabo escrevendo coisas que na maioria das vezes apenaseu consigo entender !!
:)