Censura
A censura de cinema chegou a uma espécie de apoteose do ridículo no Brasil quando liberou, finalmente, o filme A Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, sem cortes mas com bolinhas. Sim, nas cenas de nu, ou de nus, bolinhas pretas tapavam as partes pudentas. O pundonor nacional foi resguardado, mas ali, ali. Não fizeram um bom trabalho. Posso imaginar os retocadores do filme no laboratório, numa corrida contra a data do lançamento. Obrigados não apenas a caprichar na bolinha como a acertar sempre no, digamos assim, alvo.
-Você deixou passar um. Ou uma, no caso.
- Deixa ver. Mas isso não é.
- Como não é? Claro que é.
- Tem certeza?
- Eu conheço uma parte pudenta quando vejo, meu caro. Bolinha nela.
- Deixa ver. Mas isso não é.
- Como não é? Claro que é.
- Tem certeza?
- Eu conheço uma parte pudenta quando vejo, meu caro. Bolinha nela.
E havia a questão do movimento. Muitas vezes, no filme, as partes pudentas não ficavam num lugar só. Tinham que acompanhar a ação dramática e locomoviam-se. A bolinha preta era obrigada a correr atrás e muitas vezes não chegava a tempo. Por alguns segundos uma parte pudenta ficava assim como o Júnior quando avança, sem cobertura e a moral da Nação desguarnecida. Tenho a impressão que foi o fracasso das bolinhas pretas que determinou a liberação da censura. Houve uma espécie de catárse pelo absurdo. Hoje todo o Brasil pode ver os filmes que o filho do ministro vê. A censura limita-se a classificar o filme para esta ou para aquela faixa de idade. Mas não tem como escapar do ridículo. Também dá a justificativa para a classificação e a justificativa vai impressa no certificado de censura e é usada na propaganda do filme. Por exemplo:
Cenas de sexo.
Cenas de sexo explícito.
Linguagem sugestiva.
Cenas de tensão.
Violência moderada. Etc. As frases não só estragam um pouco a expectativa do espectador - como aqueles famosos títulos de filmes em Portugal, que revelavam o final, Foi o Mordomo, ou Morrem Todos Menos o Petz - como ficam cada vez mais minuciosas. Em breve teremos no certificado descrições detalhadas do que nos espera e do que ocasionou a censura.
Tensão moderada, linguagem chula e olhares ambíguos.
Sugestão de homossexualismo, bestialismo moderado, referências ao modelo econômico.
Glutonismo nojento e risível, dois palavrões, esguicho de sangue no fim.
Orgia, com anões besuntados, cena de descarga aberta, indução ao cinismo.
Pode-se imaginar o que diriam os certificados de censura de algumas obras famosas.
Cinderela: cenas de revolta social e fetichismo com pé.
A Paixão de Cristo: cenas de violência e inconformismo político etc.
Os Irmãos Karamazov: cenas de epilepsia explícita, parricídio moderado.
Pinóquio: simbolismo lúbrico.
Oliver Twist: cenas de insubmissão, indução ao crime, anti-semitismo.
Branca de Neve e os Sete Anões: cenas de desagregação familiar, violência, tensão moderada, sugestão de sexo grupal, morbidez, necrofilia.
Novo Dicionário da Língua Portuguesa: linguagem chula.
A Bíblia: cenas de sexo, cenas de violência, cenas de tensão, incesto, crítica de costumes, luta de classes, parricídio, matricídio, fatricídio, infanticídio, genocídio, idolatria, indução à subversão, linguagem sugestiva, sodomia, onamismo, adultério, ocultismo, tortura, curandeirismo, prevaricação, latrocínio, indução à vadiagem, messianismo.
Tom e Jerry: cenas de nudez, cenas de violência e extrema tensão.
O Minotauro: sugestão de bestialismo.
Chapéuzinho Vermelho: cenas de violência, cenas de tensão, travestismo.
Mas, enfim, tudo é preferível às bolinhas pretas.
por luis fernando veríssimo
publicado na Folha de S. Paulo em 09/01/1982
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