Fazia tempo que eles cercavam minha casa. Eu sabia quem eram. Hoje, pegaram coragem e tocaram a campainha.
Fui atender, eram dois daqueles missionários engravatadinhos dessas seitas norte-americanas que andam aí pelo Brasil, recolhendo almas como quem compra peles de jacaré e jaguatirica.
Lembrei de uma vez quando meu pai estava no portão de casa e chegaram dois desses apóstolos. Um deles estendeu a revista da sua seita, meu pai apanhou-a, e leu a manchete da capa:
"Você sabe como se vai para o inferno?"
Meu pai leu e apontou para uma rua logo abaixo da nossa:
- Olha, vocês pegam aquela rua, e seguem em frente...
Os missionários pareciam dois manequins de vitrine, o terninho e a gravata impecáveis, a maletinha na mão, o cabelo recruta, aquela cara de vendedor de apólices de seguro.
Fui recebê-los no portão e perguntei, assim como quem não quer nada:
- Em que posso servi-los?
- Gostaríamos de conversar com o senhor durante uma meia hora.
- Para quê, posso saber?
Nessa hora, passava um sorveteiro assobiando para despertar as crianças do bairro.
- É sobre a salvação da sua alma.
- Por que é que não disseram logo? Entrem, por favor. Recebi-os na sala, onde sentaram com suas almas e maletas nos joelhos.
Eu trouxe uma cerveja, uma dose de uísque e uma carteira de cigarro.
- Somos da igreja das não-sei-o-que-o-que-lá - disse o mais bem-falante. - O senhor já deve ter ouvido falar.
- Quem sabe? - eu respondi. - Eu ouço falar de muita coisa. O duro é guardar tudo.
O missionário ia abrir a maleta para me inundar de folhetos, quando eu ponderei:
- Esperem um pouco. Se entendi bem, vocês vão tentar me converter. Eu também quero converter vocês. Então, vamos fazer o seguinte. Eu dou 15 minutos pra vocês tentarem me converter. Daí, vocês me dão 15 minutos para eu tentar converter vocês.
Quem teria palavras para descrever a perplexidade que tomou conta dos apóstolos? O mais bem-falante tomou a iniciativa:
- Temo que o senhor não esteja entendendo. Trata-se da sua alma.
- Estou entendendo muito bem. Trata-se da alma de vocês também.
- Viemos para que o senhor entregue sua alma a Cristo Jesus Nosso.
- Não levem a mal, mas não vejo nenhuma necessidade. Eu e Jesus sempre nos demos muito bem. Conheço ele há tempos. E tenho certeza de que ele não tem nenhum interesse em minha alma. Ela está toda esburacada, sofreu vários incêndios, e eu vou precisar dela à hora que eu morrer.
- Mas Jesus habita a nossa Igreja.
- Engraçado, eu falei com ele ainda ontem e ele não me falou nada de vocês. É um contrato recente?
O apóstolo instalou a cara mais imbecil de que foi capaz naquela conjuntura. Levantou-se. O outro levantou-se. Dei um gole na cerveja.
- Nossa Igreja deseja que a luz do Senhor Jesus ilumine esta casa.
- Isso porque não é ela quem paga a conta da luz. - respondi juntando o que ainda me restava de sombra.
por paulo leminski publicado na Folha de S. Paulo em 1/5/1985
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